O
Burrico com Olhos Orientais
Abilio
Terra Junior
Da
janela do rústico hotel
avisto o morro ‘Dois Irmãos’.
Mergulho a vista em uma ampla
escala de 180 graus, em que
pequenas luzes acendem de
casas antigas que contam histórias
de muitos séculos e
uma igreja grandiosa se destaca.
O rio de águas barrentas
segue seu curso, recortando
a cidade em curvas. Recuperou
um pouco do seu antigo esplendor,
se avolumando ao receber em
seu leito as chuvas dadivosas.
É o Rio das Velhas,
já conhecido no passado
distante pelos bandeirantes,
índios, escravos, pescadores
e mineradores, aqueles primeiros
e estes últimos à
cata do ouro e das pedras
preciosas.
A vista é linda, da
varanda do pequeno chalé,
onde uma coroa natural de
flor silvestre me brinda.
Carros passam lá em
baixo, ao lado do rio. Polly,
a nossa cachorrinha, busca
o meu colo, tremendo com o
frio que chega, silencioso
e denso. Em uma varanda abaixo
e na lateral da nossa, um
cachorro jovem, com as orelhas
cortadas, late sem parar ao
sentir as nossas presenças,
que vislumbra através
do emaranhado de cipós,
folhas e flores silvestres.
Sabará é respeitável,
em sua nobreza secular e negra.
Quantas histórias de
amores, conquistas, ódios,
vinganças, ciúmes,
violências, se escondem
em seus becos, ruas estreitas
e íngremes, pavimentadas
com ‘pés-de-moleques’,
igrejas suntuosas, casas velhas
e cansadas ou mal recuperadas
por quem não soube
respeitar o estilo arquitetônico
vigente desde o passado.
Agora, o manto negro da noite
absorveu a paisagem, e restaram
milhares de pontos de luz,
que se avistam da janela quadriculada
em azul, enquanto a Polly
se assusta com a sirene repetitiva
de uma ambulância, que
passa distante, ao socorrer
alguma vítima de um
infortúnio.
À tarde, observei,
através de um gigantesco
portão de ferro, um
cemitério com gavetas.
Pelas datas dos falecimentos,
nos túmulos, notei
que ele continua sendo utilizado;
há datas recentes.
Um dos túmulos/gavetas
está vazio, com seu
ventre de tijolos mal empilhados
exposto. Aquilo me pareceu
uma contravenção
a uma regra secular, um desrespeito
às carnes que ali se
decompuseram, aos ossos que
ali se desfizeram em pó,
às almas que ali repousaram
à espera de um melhor
destino. Há, no centro
do cemitério, quatro
túmulos, em tamanhos
e opulências decrescentes,
até que o último,
bem menor, de uma criança,
está apenas pintado
de branco e com os dizeres
pouco visíveis. Imagino
que aquele conjunto, em escala
ascendente, representa o caminhar
da alma por este nosso mundo
de contrastes, surgindo, simples
e humilde, como o é
uma criança ou um animal,
e, sucumbindo, etapa após
etapa, aos humanos fracassos,
glórias, deveres, ofícios,
vícios, ‘pompas e circunstâncias’,
até alcançar
o acúmulo de títulos
e o seu findar, que nivela
a todas as almas no barco
que cruza o Rio Estige, conduzido
por Caronte.
Do outro lado da rua, uma
igreja portentosa, representante
do terceiro período
do Barroco mineiro, como explica
a placa afixada à porta
lateral. Observo-a atentamente,
a sua simetria perfeita. Caminho
em frente a ela, ao seu lado,
e vejo nela a imagem da Igreja,
opulenta, rígida em
seus princípios, inflexível,
dogmática, dura, respeitável,
majestosa. Chego até
a casa do padre, com um jardim
repleto de lindas flores.
É a imagem externa
da igreja, amena, atraente,
bela, sedutora, que atrai
os incautos aos seus braços
amplos, mas implacáveis.
Não consigo resistir
à enigmática
e convidativa Igreja de Nossa
Senhora do Ó, que sempre
me atraiu; já a visitei
muitas vezes. Chego bem na
hora em que um pequeno grupo
de turistas se prepara para
ouvir o guia, didático.
Ele nos explica, pontuando
bem as frases, com convicção,
como todo guia que se preza,
que a linda igrejinha é
a mais chinesa do Brasil,
pois foi construída
por portugueses de Macau,
que, como todos sabem, foi
uma colônia lusitana
lá no distante Oriente.
Em razão disto, todos
os personagens das pinturas
portam olhos orientais, amendoados,
e as cores e motivos são,
igualmente, de origem chinesa.
A imagem central do altar,
de Nossa Senhora, está
grávida, tendo em vista
o nome original da igreja,
Nossa Senhora da Expectação
do Parto, ou algo parecido.
Há imagens de uma intimidade
tocante, como as que retratam
a circuncisão de Jesus.
Os motivos chineses à
esquerda do altar se repetem
à direita, mas espelhados,
dando a impressão de
movimento, uma das características
do Barroco. Partes de algumas
pinturas se perderam para
sempre, em razão da
‘brilhante’ idéia de
um padre, já no século
vinte, que resolveu abrir
umas janelas sobre as pinturas,
assim como de um artista português
que resolveu construir um
púlpito, também
sobre estas, hoje desativado,
por não se usar mais,
embora se celebrem missas
ali. As citadas janelas também
foram demolidas. E, para finalizar,
em respeito à tradição
lusa, não poderia faltar
a figura de um burrico com
olhos orientais...
Sabará-MG,
11/11/2006
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